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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A Figueira, o cipreste e a borracheira



O "ensaísta" e por-enquanto-vereador Tavares lançou mais um opúsculo. Desta vez “a solo” e agora, para intelectuais. 
A obra, «Arquétipos e Mitos da Psicologia Social Figueirense»” de cariz, digamos, “filosófico-sociológico”, mas ainda assim ambiciosa, propõe-se, segundo o jornal “O Figueirense”, conhecer aquilo que são os traços marcantes da personalidade colectiva figueirense. Segundo depreendi da cobertura do jornal, Tavares, que nasceu em Angola, dá neste livro uma espécie de mergulho impressionista nas águas frias do labirinto da saudade figueirinhas.
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Qual Eduardo Lourenço da foz do Mondego, Tavares mergulha a fundo na temática da problemática dos mistérios da “saudade figueirense” que faz “sentir no presente a ausência de um passado” e que “gera sentimentos de inacção em relação à construção do futuro”; discorre sobre a “fome de verão”; conclui que “Falta massa crítica interna. Estamos à espera de alguém que nos salvee emerge, segundo o próprio, já convertido. “Sinto-me um figueirense”, disse.
Ou seja, o pathos figueirinhas é, segundo o autor, uma tragédia.
Na Figueira é assim; há os naturais e os convertidos; e não há nada a fazer, não há massa crítica interna. Neste ponto estamos de acordo, só que eu, ao contrário do autor, não vejo nisto nada de trágico. Acho cómico.
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Eu também sou natural de África, tal como Tavares e Albert Camus, mas ao contrário do primeiro, nunca me sentirei, helas, um figueirense. Serei sempre uma espécie de Mersault. E tal como a do “herói” de Camus, a minha visão, igualmente distanciada, também não é afectada pela afeição, pelo sentimentalismo ou sequer pela vertigem de agradar (não sou um político, como Tavares). A minha visão pode parecer cruel, escarninha, até derisória, mas permite-me fazer análises mais objectivas da realidade.
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“O mar representa, segundo António Tavares, uma marca singular na personalidade colectiva figueirense.” Eu não concordo. 
Para outros povos peninsulares, os jogos de azar e as atracções e variedades mundanas das casas onde eram praticados eram vistos com uma suspeição baseada na percepção moral que o catolicismo tradicional lhes atribuía. Eram casas associadas ao vício e ao sub-mundo. Mas não para os figueirinhas. Na Figueira, o jogo de azar é uma actividade económica com foros de nobreza, as variedades são haute-culture e o Casino é uma catedral.
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Sim, o casino. O casino é, para os figueirinhas, o alfa e o ómega da sua “personalidade colectiva”. “Ir ao casino” é, para os figueirinhas, uma bênção suprema, um jackpot, uma extrema unção.
-Os figueirinhas vão de chanatos e pijama à missa das sete na igreja paroquial, mas para realmente ver-a-deus vestem-se a rigor (as madames reservam cabeleireira) e vão ao casino assistir às conversas da Fátima com Medina Carreira, Marinho Pinto ou outros taxistas.
-Os figueirinhas não vão ao museu ou à biblioteca (o casino preenche-lhes todas as necessidades culturais); nem sequer ao futebol (os jogos de azar satisfazem plenamente os ardores do seu espírito desportivo).
-Os figueirinhas não se importam de perder a maternidade, a serra da Boa-Viagem (em cujo espinhaço amarinham agora cada vez mais espécies endógenas, como os eucaliptos, as acácias e as moradias), a autonomia do seu porto comercial, as ligações ferroviárias às Caldas da Rainha e a Cantanhede e, agora, o próprio hospital distrital. Nada disto assiste a sua “personalidade colectiva”.
-Os figueirinhas nem sequer vão ao salão nobre da Câmara Municipal, onde acontecem as reuniões do executivo e consabidas peixeiradas - os figueirinhas não gostam do conflito, enfim, de chatices - por isso preferem o salão-de-festas do casino onde, todos aperaltados, trocam amenidades e outras genuflexões. “O Casino” é, para eles, a epítome da distinção, da urbanidade, da sofisticação. Uma marca indelével, singular, da sua “personalidade colectiva”.
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Foi aliás o casino da Figueira que consagrou Cavaco Silva, o actual presidente da república que, com o seu vasto e reconhecidamente competente gang, grupo de amigos, instalou no país inteiro a “economia de casino” em que vivemos. A este respeito, tem vindo a ganhar fundamento o rumor de uma alegada vaga de fundo para levar o actual director do casino a presidente da Câmara, o que faz sentido, sim senhor: para gerir um município com cultura de casino, numa economia de casino, nada melhor do que um autêntico “gestor de casino”.
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“A Figueira da Foz está sempre à espera de algo que vem de fora”. Aqui estou de acordo com Tavares. Relembro até uma tradição popular (desprezada pelo autor enquanto vereador) que consubstancia brilhantemente esta acepção: a “Espera dos Reis” – na noite do dia 6 de Janeiro, dia de Reis, um grupo de populares sai à rua com candeias e uma escada, para “esperar os reis”. Trata-se de uma peculiar tradição que, se Santana Lopes (essoutro “príncipe de casino” também vindo de fora e sufragado, quase por unanimidade, pelos figueirinhas) ainda fosse presidente da Câmara, já teria sido concerteza, a exemplo do fado, consagrada património imaterial da humanidade.   
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Por fim, e para refutar de vez a tese de Tavares – segundo a qual o pathos figueirense é uma tragédia mansa - não há nada como observar os costumes funerários das colectividades (ou seja, como os vivos tratam os mortos) para confirmar a definitiva e álacre vis comica da “personalidade colectiva” figueirinhas:

-ao contrário de outras localidades que nos seus cemitérios cultivam solenes e longilíneos ciprestes que apontam ao céu, graves e acusadores, os figueirinhas preferem (como se pode ver na foto acima, no cemitério setentrional) frondosas e exuberantes borracheiras, que amarinham voluptuosas pelos mausoléus. Na Figueira é assim: a nonchalance é para a eternidade.
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