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quarta-feira, 24 de abril de 2024

A hipnose por escrito - dois filósofos


 

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Em Portugal o analfabetismo é, hoje, reconhecidamente residual. No entanto, a maioria dos portugueses não lê; e não só não lê – absolutamente nada - como se orgulha disso. Dito de outro modo, o analfabetismo não é já uma triste, atávica e constrangida condição individual mas uma prática generalizada, convicta e voluntariosa.

Esta tendência, digamos assim, é fortemente incentivada pela mundivisão veiculada pelos principais meios de comunicação de massas cuja estratégia, simples, já enunciei aqui, é rebaixar tudo o mais possível ao nível mínimo de mediocridade que julgam palatável ao seu público-alvo. Para tal, com recurso a um vocabulário cada vez mais reduzido ao elementar, o complexo simplifica-se até ao esquemático; o óbvio discute-se até ao ridículo; estimula-se a irrelevância até ao absurdo e desdenha-se a notoriedade até à humilhação; o belo avacalha-se; o decente emporcalha-se; o digno torna-se equívoco; o justo torna-se suspeito; a ciência, descredibiliza-se; a arte, anedotiza-se; o gosto não se discute; tudo se imbeciliza, integrado na mesma narrativa: a narrativa do “sempre foi assim e não pode ser de outra maneiraque, xaroposa e bafienta, apela ao tédio e ao torpor, ao velho conformismo do gado que vegeta.

No actual quadro geral deste estado da arte é muito raro que o lançamento de um livro (ou qualquer outro evento vagamente literário ou cultural) seja objecto, ou assunto, nos principais noticiários das televisões.

Quando tal acontece presumo que tenha como público-alvo aquela ínfima parte de portugueses que sabe ler e ainda o pratica - decerto para os instruir na mesma vã filosofia que reservam às massas e que enunciei acima. Sim, porque ainda existe, mesmo que residual, um certo número de portugueses que são leitores praticantes. Entre estes, contudo, não é despiciendo que o jornal mais lido seja o Correio da Manhã - e os livros mais vendidos sejam os de auto-ajuda. Isto deve significar, receio, que a maior parte dos portugueses que sabe ler e ainda pratica reconhece (a si própria) que tem um problema.

Recentemente houve dois lançamentos de livros que chegaram à hora nobre do noticiário das televisões (e até à primeira página do Correio da Manhã).

Trata-se de dois acontecimentos que atraíram para as ribaltas mediáticas toda a fina flor dos piças-d'aço do pensamento mentecapto nacional, a “nata da nata” da nossa direita mais ultramontana e reaccionária: o livro “Liderar com as pessoas” do inefável Carlos Moedas (Moedas é aquele prócer da política sem ideias e grande criador e teórico da ideologia da não-ideologia de que já me ocupei aqui) e o livro “Identidade e Família”, coordenado pelo não menos inacreditável César da Neves.

César das Neves é aquele filósofo cretino que nunca se engana nem tem dúvidas (já foi conselheiro do Cavaco) e sobre quem já me debrucei aqui. Ele também acredita em deus nosso senhor, na “identitaridade” da família, na santa tradição, na mortificação corporal praticada com moderação e senso-comum e na santidade pelo trabalho e tudo, e até disse uma vez que vinha aí o diabo. Neves é um filósofo opus dei - o que quer dizer que ele é o feliz depositário e propagandista de bem mais do que uma filosofia política, uma crença - que se consubstancia num sincretismo acrobático (a espargata filosófica ou salada césar) entre o conservadorismo brutal e “primitivo” do “trono e altar”, de Joseph de Maistre e o “moderno” e liberal ultra-montanismo dos santos mercados, de Edmund Burke.

Carlos Moedas e César das Neves são, assim, dois pregadores sancionados pelos media para evangelizar os portugueses por escrito. Hipnotizá-los pelo verbo. Sobretudo aqueles que lêem o Correio da Manhã e livros de auto-ajuda - mostrar-lhes o caminho, a verdade e a vida, o paraíso fiscal, os bons costumes, a parceria publicóprivada, a família tradicional, os valores, a segurança, o respeitinho e tal.

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sexta-feira, 19 de abril de 2024

HEITOR CHICHORRO (07/07/1944 - 18/04/2024)


 

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O mundo está a ficar  mais imbecil e absurdo; e a vida, cada vez mais incompreensível e insuportável. Heitor Chichorro morreu ontém.

Não éramos muito próximos. A última vez que estivemos juntos foi quando, sempre pródigo e generoso, se deu ao trabalho de visitar a exposição que fiz no Tubo d'Ensaio de Artes, em 2012. Mas ia sabendo dele através do Facebook, onde ele partilhava algumas das suas maravilhas. Chichorro trabalhou sempre, até ao fim de uma vida admirável. Dono de um sentido de humor categórico e desinteressado, extravagante (pouco dado a reticências, eufemismos piedosos ou encomiasmos superlativos) tenho para com ele uma inesquecível, e impagável, dívida de gratidão, que expliquei aqui

Há poucos homens assim, que eu respeite sem reservas. Agora ainda menos.

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terça-feira, 9 de abril de 2024

O (novo) secretário dos assuntos “pralamentares”


 

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O novo secretário d'estado dos assuntos parlamentares não é novo. Aliás como o governo. (num país que vive, como se sabe, num regime de alterne, um novo governo é sempre uma espécie de versão mais ou menos refrescada do anterior).

Digamos então que Carlos Abreu Amorim é assim um rapaz da minha idade. Para as crónicas mais amáveis ele é um sujeito polémico; para as outras é apenas um gajo tóxico. Tudo isto porque tem por costume tuitar bacoradas racistas a propósito de tudo e de umas botas.

Eu cá acho, no entanto, que Carlos Abreu Amorim é um sujeito dotado do mais requintado, equívoco, retorcido, talvez perverso (ou pervertido) ou apenas desmiolado, sentido de humor.

Eu explico. Na página onde explana com fulgor e panache todo o esplendor da sua visão imbecil da vida, @cabreuamorim usa sans soucis (isto é, sem jamais me ter pedido amável autorização ou sequer me ter perguntado cortezmente quanto custa) a caricatura que lhe fiz, e que editei aqui, em 2013. Presumo que, sendo ele representante eleito de uma classe que tanto preza a sacro-santidade do direito à propriedade privada, isto configure algo que lhe é muito grato e que os marxistas chamam, com propriedade, apropriação primitiva (Proudhon chamava-lhe, mais sucintamente, um roubo).

Devo sublinhar que isto não me choca nem um bocadinho; nem considero sequer que seja um abuso intolerável. Eu gosto de partilhar. Sempre votei nos comunistas.

Mas acho delicioso - impagável - que ele se reveja tanto nesta caricatura que tenha feito dela o seu emblema. Isso sim, ninguém me tira.

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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Retrato de grupo pralamentar

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Embora a isso nunca me tivesse proposto, pelo menos de forma consciente, tenho vindo a – este é um blogue de desenhos - desenhar, redigir e editar, com as minhas tamanquinhas (isto é, dentro das minhas muitas e pobres limitações) o meu próprio Album de Glórias. Trata-se, sucintamente, de uma espécie de crónica impressiva (uma colecção de cromos – retratos capitosos, caricaturas – ilustrada ou não com textos mais ou menos copiosos mas sempre judiciosos) sobre os elementos mais destacados ou notórios da nossa garbosa classe dirigente.

Depois da crónica pasmada do desinfeliz e acantinflado governo de maioria absoluta de António Costa, na desastrada XV legislatura, eis-nos, passada a página, em novo capítulo, noutra legislatura.

A nova legislatura, a XVIª - com a sua nova classe dirigente, o seu governo também novo e novas correlações de forças - não desfazendo, também promete.

Se a vida nos dá limões, há que espremê-los, façamos limonada.

Ao contrário, porém, do costume, em que privilegio o retrato individual, com estudo fisiognomónico da personalidade e das suas desvairadas idiossincrasias, dou início a este novo capítulo com um, nem por isso menos ambicioso nem menos sucinto e circunspecto, retrato “de grupo”. Um grupo parlamentar. O do partido Chega.

Trata-se - desgraçadamente, ao que me dizem - de um “grupo” que veio para ficar. É precisamente por isso que aqui jaz.

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Nota de rodapé: a inclusão de um ”retrato de grupo” neste “álbum” não impede a futura edição de retratos individuais dos seus mais vistosos integrantes - em função, como é óbvio, dos seus mais que previsíveis destacados desempenhos.

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